Ed. 20 - Anotações desconexas sobre um homem que admiro
Ao som de várias canções de Daniel Balavoine e associados
Daniel Xavier-Marie Balavoine (Alençon, França, 1952 - Gourma-Rharous, Mali, 1986), cantor, compositor, agitador político. O mais novo de seis irmãos, pai de dois filhos (um dos quais ele não viu nascer), até o fim guiado por seu coração.
Todo mundo precisa de um modelo para viver. Encontrei o meu por causa de um musical em um idioma que não entendia; fui estudar e escrever por causa de suas canções, descobri mundos surpreendentes, vivi aventuras estranhas.
A Vanessa comentou em alguma rede social que sentia falta de ler newsletters em que os autores falassem sobre coisas que amam. Bem, cá estão algumas anotações sobre um cara que quase ninguém conhece no Brasil, mas que amo muito — e que ajudou a moldar duas ou três gerações de cantores em sua terra natal, direta e indiretamente.
1.
Na seleção francesa de futebol, existe um ritual de bizutage (o equivalente do nosso trote) para os jogadores que se apresentam pela primeira vez na concentração de Clairefontaine: eles precisam cantar uma música na frente de todo mundo. Na bizutage dos jogadores convocados para a Copa de 2018, teve muito hip-hop e rap — o que seria esperado de uma geração que mal tinha nascido na última vez que o país ganhou a Copa.
E aí teve a apresentação de Benjamin Pavard. O jogador da linha de defesa, convocação surpreendente do técnico Didier Deschamps, saiu-se com uma versão de “Le Chanteur”, sucesso de 1978 de Daniel Balavoine para seu batismo. Imediatamente, o tímido garoto do Norte do país virou o queridinho da nação (marcar um gol impossível do meio do campo em plena Copa do Mundo ajudou bastante depois.)
“Le Chanteur” é, sem sombra de dúvida, o maior sucesso de Balavoine. É a canção-tema do sujeito, aquela que o idioma natal dele chama de incontournable: a inevitável, o primeiro item do best-of.
Essa era também a canção de um compositor cansado de dar soco em ponta de faca, com o contrato com a gravadora por vencer e sem mais nada para perder.
Balavoine defende “Le Chanteur” em 1979 - dá para ter uma ideia de onde saiu a imagem do Google Doodle!
Le Chanteur, o disco, era o terceiro de Balavoine pela gravadora Barclay. E o chefe já tinha avisado: ou essa porcaria vende, ou porta da rua para o cantor de Alençon. Ele tinha lançado dois discos pela gravadora, sucessos de crítica mas definitivamente não de público — mas 1978 era o ano em que dez anos de carreira como corista, compositor e cavalo-de-batalha finalmente se pagaram: o lamento irônico de Henri, cantor que quer fazer sucesso mas não quer ter trabalho, e que “irá morrer infeliz por não se arrepender de nada”, vendeu um milhão de cópias na França. Ele foi catapultado para o alto e de lá não desceu mais.
Mas quanto custou para a catapulta funcionar!
2.
Balavoine era gordinho, cabeludo, narigudo e bocudo — nem de longe material para grand idole. Sorte que ele tinha uma voz que atingia fácil agudos e graves, um talento teatral imenso e uma cara-de-pau que desconhecia limites. Quando você nasce na beira do mapa, é preciso correr duas vezes mais para chegar a algum lugar.
Tudo isso “desperdiçado” atrás do microfone dos outros: ele fazia backing vocals para outros cantores (junto do irmão Guy e de amigos), compunha para os outros, ralava em vinte frentes diferentes: cantor de bailes, produtor, promotor de festas... Numa dessas, ele foi parar no Eurovision, cantando com a então namorada (de quem ele permaneceu amigo para toda a vida), Catherine Ferry - que ficou em segundo lugar na competição de 1976, em Haia (Países Baixos).
Daniel é o primeiro da esquerda para a direita na linha de “backing vocals”; Guy, seu irmão, é o rapaz ao seu lado. Naquele tempo, a apresentação no Eurovision era com orquestra ao vivo, sem ‘playback’. O Reino Unido ganhou a competição por vinte pontos de vantagem — tem gente até hoje dizendo que foi roubado.
Assim como hoje em dia, quem participa do Eurovision precisa defender a música se apresentando Europa afora, e os melhores colocados acabam excursionando de novo na onda do sucesso do disco — e foi assim que Daniel, na entourage de Catherine, conheceu a Berlim dividida ao meio por um muro. Ele compôs um disco inteiro em cima da experiência, uma proto ópera-rock chamada Les Aventures de Simon et Gunther, narrando a vida de dois irmãos separados pela divisão do país: Gunther fica do lado ocidental, e tenta ajudar o irmão Simon a fugir do lado oriental.
Les Aventures… foi o segundo disco de Daniel na Barclay. “Lady Marlène”, o single de maior sucesso (se é que dava para chamar assim — vendeu pouco, o sinal amarelo acendeu na sede da gravadora) chamou a atenção de um compositor que estava montando um musical novo em Paris - aquela voz era perfeita para o papel do herói da trama.
Isso era em 1977. Dali um ano, a catapulta lançou Daniel ao alto do mundo francofônico.
3.
Conheci Balavoine por causa do musical em questão — o CD duplo foi presente do mestre-jedi do meu então namorado, que tinha residido por muitos anos em Paris.
Sabe aquela palavra que mencionei, incontournable? Esse musical é bem isso. Starmania, uma história distópica sobre um milionário que quer ser presidente do mundo, e um grupo de desesperados em um café subterrâneo que tem planos de impedi-lo (spoiler: não dá muito certo), teve várias montagens desde 1978, lançou carreiras de vários cantores e fezz um grande furor. Travestis, telejornalismo sensacionalista, pobreza, violência, briga de egos, solidão — tudo isso misturado com música assobiável. Era e é de cair o queixo.
O autor das melodias era Michel Berger, que já era respeitadíssimo no meio musical local. Foi ele quem ouviu “Lady Marlène” na televisão e decidiu que aquele cara ali seria o protagonista de seu musical.
Em cena, Balavoine fazia par com uma ex-cantora infantil, ex-vencedora do Eurovision, ex-vítima das canções de duplo sentido de Serge Gainsbourg, a queridinha da França: France Gall.
Berger casou-se com Gall, e foram felizes até a morte dele, catorze anos depois.
Berger e Gall tinham Daniel como um irmão mais novo. A morte repentina de Daniel, oito anos depois de Starmania, foi como um meteoro na vida dos dois.
Da montagem original de palco em 1978, não sobrou nem meia dúzia de vídeos - esta apresentação em ‘playback’ para a televisão, cortesia do arquivo nacional francês, é o melhor que existe para ver essa dupla cantando. O disco conceito e a gravação o vivo de 1978 estão disponíveis pelo Spotify.
4.
Quando digo que Balavoine era bocudo, não é força de expressão: o sujeito brigava pelo que achava que era certo, e danem-se as consequências. Certa feita, em 1981, ele bateu boca ao vivo na televisão com o então candidato à presidência François Miterrand, dizendo (com razão) que a França tinha abandonado os jovens à míngua.
Não era comportamento que se esperasse de um cantor pop, mesmo que o dito cantor fosse membro ativo da Anistia Internacional, um dos padrinhos de um dos maiores movimento de alimentação aos pobres na França1, um dos primeiros a discutir abertamente o racismo francês (casado que era com uma marroquina de origem judia), crítico da ação militar francesa no Oriente Médio porque um de seus irmãos era do Exército e ele morria de medo de vê-lo morrer por nada.
Hoje em dia, teriam cortado a transmissão.
5.
Não gosto de lembrar que ele morreu. Foi em um acidente de helicóptero no Mali. Daniel gostava de carros, competiu em ralis de maneira amadora, e sua experiência na África durante o Paris-Dakar lhe inspirou a criar uma associação para instalar bombas de água em vilas no deserto2. Ele vinha da inauguração de uma dessas bombas quando o helicóptero onde estava caiu. Junto dele estava o fundador do Paris-Dakar, Tierry Sabine, e dois jornalistas que cobriam o evento. Ninguém sobreviveu.
Isso foi em 14 de janeiro de 1986. Corinne, a esposa de Daniel, estava grávida, e não compareceu ao funeral por ordens médicas (o casal já tinha um filho, Jérémie, nascido em 1984; Joana nasceria cinco meses depois da morte do pai.)
Tudo o mais foi caos e silêncio.
“Dieu Que C’est Beau” foi escrito em homenagem ao nascimento de Jérémie. É uma das minhas músicas preferidas dele.
6.
E de volta ao começo: à bizutage e aos jovens da seleção francesa de 2018. Balavoine é mencionado e remixado até hoje pelos cantores pop - e também pelos rappers do país. Minha versão preferida é “Pour Faire un Disque”, de 2015, em que o rapper franco-congolês Youssoupha desenvolve o tema musical de mesmo título, lançado originalmente em 1982.
Poderia falar muito mais, mas é com essa versão que encerro a carta de hoje. Vanessa, se você ler, espero que tenha curtido - agradeço a inspiração :)
Trata-se dos “Restos Du Coeur”, até hoje em atividade. Vou falar mais dessa iniciativa em uma próxima edição, porque ela tem muito a ver com música.
A associação segue funcionando até hoje, mantida pela família do cantor com o auxílio de voluntários e doações.
eu amei!!!! só por esse post já valeu a pena ir reclamar no twitter hahaha
já ouvindo Daniel aqui <3