Ed. 22 - O que fazer com essa gente normalzinha?
Ao som de "Spasticus Autisticus", de Ian Dury
Tem horas em que você lembra de uma pessoa e passa semanas pensando nela. No meu caso, tive o Mês Ian Dury por aqui. Culpa de um conto que vai sair esse mês (falo mais dele no fim da newsletter), porque encasquetei que o personagem principal com certeza seria fã do sujeito.
Ian Dury (1942-2000) foi um compositor, cantor e ator britânico. Um poeta difícil de catalogar, em vários sentidos. Obsceno, às vezes. Direto ao assunto, sempre. Um observador nato da vida cotidiana, em especial das pessoas invisíveis (motoristas de ônibus, pedintes, velhinhas). Teve uma canção no topo das paradas em 1979, “Hit Me With Your Rhythm Stick”, uma mistura maluca de rock, funk, uma letra aparentemente sem sentido e também cheia de duplo sentido. O refrão é me acerte com sua baqueta — para um homem hétero cantar isso em 1979, imagine a cara de pau necessária.
Cara de pau, Ian Dury tinha de sobra. Era preciso: quando você é uma pessoa com deficiência num mundo que não te reconhece, o que mais você pode fazer?
Ian contraiu poliomielite em 1949. Foi um surto que varreu a Grã-Bretanha, causando estragos até hoje incalculáveis. No caso do menino de sete anos, filho de um chofer que abandonou a família e de uma dona de casa, a doença significou o atrofiamento do lado esquerdo do corpo, e anos em escolas para deficientes físicos — o que contribuiu para o modo como ele via o mundo: era preciso se esforçar o dobro para ser alguém “normal”, para se encaixar… e ao mesmo tempo, saber que você nunca seria como os outros, mesmo que quisesse.
Dury se formou em Arte, deu aulas em escolas, fazia ilustrações para jornais… E um dia começou a escrever música e cantar com uma banda local. Tinha vezes que ele precisava ser içado palco acima (ele sempre andou com uma bengala), mas quem disse que era impedimento? Estamos falando do começo do punk, afinal. E embora Ian não fosse do tipo que andaria por aí com um penteado moicano no cabelo ou com alfinetes na bochecha (ele fazia mais o tipo rockabilly: seu herói era Gene Vincent, um dos primeiros rockers da História1), ele era, sim, punk até a medula.
E aí entra a canção de hoje: “Spasticus Autisticus”, de 1981.
1981 foi o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência. E se tinha uma coisa no mundo que Dury odiava era a condescendência que vinha com os eventos de caridade da época. Depois de se recusar repetidamente a participar de eventos de arrecadação de fundos (porque detestava exibir-se como “exemplo de superação”), ele saiu-se com o que classificou de “canção de anti-caridade”, na verdade um apelo para a compreensão sobre o que era, de verdade, ser alguém com deficiência.
E, bem, eu disse que Ian Dury podia ser obsceno. Spasticus é uma piada com Spartacus, o gladiador romano que liderou uma revolução — e também com a palavra spastic, ou espástico, condição de quem sofre de paralisia cerebral. Na Inglaterra daquele tempo, spastic — ou ainda spazz — era palavrão pesado. O mesmo que chamar alguém de “aleijado” ou “troncho”.
Não é à toa que as rádios da BBC se recusaram a tocar a música (contém ironia.)
I'm spasticus, I'm spasticus I wibble when I piddle Cos my middle is a riddle I'm spasticus, I'm spasticus I'm spasticus autisticus I dribble when I nibble And I quibble when I scribble Hello to you out there in Normal Land You may not comprehend my tale or understand As I crawl past your window give me lucky looks You can read my body but you'll never read my books (...) So place your hard-earned peanuts in my tin And thank the Creator you're not in the state I'm in So long have I been languished on the shelf I must give all proceedings to myself (...)
Eu sou Spasticus, Spasticus eu me tremelico quando me mijo porque meu meio é um mistério Eu babo quando lancho E eu atrapalho com meus garranchos Salve vocês aí na Normalândia Vocês podem não compreender meu drama ou mesmo entender enquanto eu me arrasto debaixo da suas janelas, me desejem sorte Você pode ler meu corpo, mas nunca leriam meus livros. (....) Então jogue sua grana suada na minha latinha E agradeça ao seu Criador por não estar na minha situação Eu passei tanto tempo pegando pó na prateleira que os lucros da arrecadação vão ficar comigo mesmo (...)
Santa Ironia, Batman: “Spasticus Autisticus” foi banida da rádio, o single não vendeu nada… mas os “spasticus” que ouviram a canção entenderam bem o recado e fizeram do tema um hino à parte. Tanto que a música foi cantada sem censura na cerimônia de abertura das Paraolimpíadas de Londres em 2012, com a dupla de música eletrônica Orbital e membros do Graeae Theatre Company, criado e mantido por pessoas com deficiência.
(o cantor principal estava vestido como Ian Dury - topete, cachecol e tudo. E sim, é Sir Stephen Hakwins no palco usando os mesmos óculos do Orbital. E tem uma participação de Sir Ian McKellen no meio, também.)
Salve vocês aí na Normalândia — peguem sua condescendência e sua narrativa capacitista e… bem, Ian Dury teria dito uns palavrões para encerrar. Deixo por conta de vocês imaginarem a cena.
Eu disse na abertura que meu Mês Ian Dury começou porque precisava de uma trilha sonora para meu conto novo - “Se Sou Um Cão, Tem Cuidado com Estes Dentes”, que faz parte da coletânea A Lua É Sempre a Mesma, publicada pela Agência Magh.
Pois bem, se você gosta do mito do lobisomem, e topa ver quantas variações é possível criar com o tema (de um Carnaval em Salvador até o futuro cyberpunk… passando por um lobisomem punk de 1986 que com certeza tem o single de “Spasticus Autisticus” autografado na estante)… Vem por aqui e depois me conta se gostou :D
Ironicamente, Gene Vincent também fazia uso de uma bengala - não por conta de pólio, mas porque um acidente de moto destruiu sua perna. Ian Dury dizia que só soube disso depois de adulto.