Ed. 04 - A História é a história de quem sobreviveu
Ao som de "Get Down", do musical "Six"
Tenho um grande problema com personagens que só se lascam (exemplos: Charlie Brown; o Homem Aranha no segundo filme do Toby Maguire; Circe no livro da Madeline Miller). A vida é feita de altos e baixos, afinal... Nas sábias palavras de Joss Whedon, “faça com que seja triste, assustador, difícil — e aí, pelo amor de Deus, conte uma piada.”
O momento de quebra nos é dado na narrativa como um instante para respirar — dramas são para sofrer, você já sabe o que te espera… Mas ajuda se você conseguir sair um pouco do caos para ver o cenário à distância e entender melhor o tamanho da encrenca. Porém, como encontrar esse momento em uma história complicada de contar?
Exemplo: se você tivesse que escrever sobre as seis esposas de Henrique VIII, como você quebra a plateia entre uma decapitação e outra?
Talvez colocando a esposa que sobreviveu em cena, mandando o reizinho mandão ficar em seu lugar, por exemplo. E aí temos “Get Down”, número do musical “Six” (escrito por Lucy Moss e Toby Marlow, aqui cantado por Genesis Lynea no álbum-conceito gravado em 20171.)
Na rima mnemônica em inglês, as esposas do famoso Rei são contadas da seguinte forma: divorced, beheaded, died; divorced, beheaded, survived. Ou seja: “divorciada, decapitada, morreu; divorciada, decapitada, sobreviveu.”
Anne de Cleves, a narradora de “Get Down”, é a quarta desta lista. A história rasa conta que Henrique VIII aceitou se casar porque o retrato da moça era bonito, mas o artigo original não fazia jus à publicidade e ele pediu o divórcio. Claro, tem bem mais coisa envolvida (quando não tem?) — mas se você fosse contar a trama em um parágrafo, isso já estava de bom tamanho.
“Six” transformou as seis esposas em estrelas pop — literalmente: do figurino à montagem de cena, tudo é feito para fazer a plateia acreditar que está em um show de Rihanna, Ariana Grande ou Dua Lipa. Cada esposa recebeu uma personalidade baseada em uma diva pop: Ana Bolena, por exemplo, é bocuda como Lily Allen; Catherine Howard lembra Britney Spears em mais de um ponto (e talvez por isso sua canção é a mais trágica da lista); Jane Seymour, que era a “esposa predileta”, ganhou uma balada classuda que lembra o repertório de Adele.
Anne de Cleves, por sua vez, lembra a Beyoncé vingativa de “Lemonade”, com um arzinho meio Lorde misturado no meio. OK, então o cara viu a foto no app de paquera mas deu para trás depois que viu tudo ao vivo? Dane-se ele, quem precisa de homem quando você tem seu próprio castelo e dinheiro para torrar? (O que é verdade: Cleves ganhou um castelo e joias no acordo de divórcio, e, dona de uma fortuna própria, tinha como se manter com o devido glamour.)
Dionne Ward-Anderson, a Anne de Cleves da atual montagem londrina de “Six”. O figurino criado por Gabriella Slade é um espetáculo à parte — a designer pesquisou os trajes da Era Tudor e os trouxe para a era das “girl bands”. Cada traje tem detalhes da personagem histórica representada na trama.
Gosto desta música justamente porque ela é vingativa — e porque já tivemos zilhões de versões do drama de Ana Bolena no audiovisual, mas ninguém pensa em falar da esposa que realmente sobreviveu: Cleves foi a última das seis a morrer, e viveu mais tempo do que o próprio ex-marido e o filho dele (Eduardo VI, o rei adolescente.) Ter entrado para a História como a “égua de Flandres” não é exatamente uma coisa que ela merecia.
“Six” reescreve a ideia do drama histórico: as esposas do rei agora são as donas da narrativa e precisam se entender umas com as outras e com o legado que lhes restou… Tudo isso em formato de arena, para completar. Fácil não é (elas brigam em cena, disputam a atenção do público, e querem se impor umas sobre as outras até entrarem em acordosobre quem é o inimigo), mas rende um grande espetáculo — não é para isso que vamos nos shows de princessas pop, afinal? Pelo ego e pelo glitter?
A modernização ajuda a lembrar que certos problemas permanecem os mesmos apesar da passagem dos séculos. É um truque narrativo que existe desde que existe narrativa (Hamilton, por exemplo, só funciona quando você vê o elenco coalhado de gente que os “pais fundadores da Pátria” teriam rechaçado, para não dizer outra coisa), mas quando funciona… quando funciona, ele te obriga a ver a situação de outro jeito. O axioma de que a “História é a história de quem sobreviveu para contar” fica bem mais interessante quando você ouve “Eu sou a rainha deste castelo / então se f… aí, mané!”
(E, sejamos honestas, vá: que mulher nunca quis dizer isso para aquele reizinho mandão que passou em sua vida?)
A jukebox da casa também recomenda: “Anne of Cleves”, de acordo com os teclados incendiários de Rick Wakeman no clássico LP “The Six Wives of Henry VIII.” Nada de drama aqui: a rainha sobrevivente sai heróica nesta canção também.
Para fins de registro, porque acho importante a genealogia: “Six” estreou em 2017 no circuito alternativo de Edimburgo; ganhou uma versão itinerante em 2018 e só no ano seguinte foi para o West End, a região dos grandes teatros em Londres. Na época de publicação deste texto, o musical estava em cartaz em Londres e em Nova York, além de contar com uma companhia itinerante na Grã-Bretanha, outra nos EUA e uma terceira na Austrália, além de uma estreia em Seul prevista para 2023.
A versão de estúdio que temos disponível foi gravada em 2017 —essas versões oficiais ou conceituais ajudam a definir os personagens de acordo com a visão dos autores, e não costumam incluir falas ou instrumentais. É por isso que os fãs de musicais costumam colecionar várias versões da mesma peça: não só para comparar os cantores, mas também as decisões artísticas de cada companhia — porque é muito comum que algumas cenas sejam adicionadas ou cortadas dependendo da montagem.
Ed. 04 - A História é a história de quem sobreviveu
Eu amo esse musical! Gosto especialmente de como ele se propõe a dar voz a mulheres que passaram sua história toda como coadjuvantes num casamento e repensar a questão do Henrique VIII ser lembrado por causa delas. Isso, as músicas incríveis e o paralelo de imaginar como seriam suas personalidades contemporâneas fazem valer demais. Quero muito ver nos palcos um dia.