Ed. 05: Leda, o cisne e a lenda da história original

E aí, beleza?
Uma vez, vi um tweet bem interessante sobre como ser fã pode ajudar a pessoa a criar material próprio. A lógica (resumida) era a seguinte:
Eu gosto disto.
Eu vou criar coisas dentro deste universo.
Eu vou criar coisas inspiradas neste universo.
Assim nascem as histórias desde os tempos em que os humanos desenhavam nas cavernas. Virgílio ouviu os gregos; Dante Alighieri ouviu Virgílio; William Blake ouviu Dante; Neil Gaiman ouviu Blake. E cá estamos, com dezenas de universos criados em cima das palavras de cada um desses artistas.
Todo mundo se inspira em alguém para começar a escrever. Pode ser uma pintura, uma música, uma frase, uma pessoa. Inspiração não nasce do vácuo (lembre-se que mesmo os textos divinos são narrados por alguém. Moisés e Maomé, cada um à sua maneira, apenas ouviram e transcreveram A Voz Acima de Todas as Vozes. A interpretação veio depois).
O fato é que não existe texto inédito. Senhoras e senhores, nem Shakespeare, o pai do ser humano moderno, trabalhava com ideias cem por cento originais. Aliás, dear William (se é que ele existiu) era o rei da apropriação e da adaptação de temas para "os dias de hoje". Exemplo mais famoso: Romeu e Julieta é adaptado de uma lenda italiana, traduzida para o inglês trinta anos antes do Bardo colocar nos palcos sua versão revista e ampliada. Se você for levar em consideração como era o esquema de montagem de peças na época, o que ele fez não era crime - mas inédito inédito também não era.
Mas eis aí o pulo do gato. Não é só o que você conta. É como você conta.
Me permite o exemplo ilustrado? Você já ouviu falar da lenda de Leda e o Cisne?
Pois bem. De forma resumida: Leda era a esposa do rei de Esparta. Zeus, o rei de todos os deuses, tomou a forma de um cisne para violentá-la (vocês aí tentem imaginar como é que se deu o acontecido - ilustração não falta e isso nem é o foco da newsletter). Para completar, Leda chocou dois ovos - e deles, diz a história, nasceram Clitemnestra, Helena, Castor e Pólux (sim, a Helena era a Helena de Tróia, aquela dos mil navios e da guerra. E isso já é outra história).
Eis como Leonardo Da Vinci teria retratado a história em 1509 ou 1510 (teria porque a pintura é atribuída a Da Vinci, mas é na verdade uma cópia feita por Giovanni Antonio Bazzi a partir do desenho original de Da Vinci).

E eis como Salvador Dalí retratou a mesma lenda em Leda Atómica (1949):

E vejam ainda esta versão do ilustrador britânico Warwick Goble (1913):

As três pinturas partem do mesmo ponto - uma mulher que é acossada por um deus transmutado. Mas reparou como cada uma das figuras conta uma história diferente?
A Leda de Da Vinci tem Castor e Pólux a seus pés e um ovo bem escondido atrás das flores (dá uma olhada de novo), uma mulher pacífica e vitoriosa, até. Afinal, algumas variações da história dizem que Zeus seduziu Leda, não que ele se forçou contra ela (eu sei, análise de discurso é tudo na vida).
A Leda de Dalí é a musa do artista, Gala, em um cenário apocalíptico. Estamos falando do mundo após o advento da bomba atômica, afinal - que tipo de deuses ou desgraças a união desses dois vai trazer? (reparem também que esta Leda está olhando para o cisne com algo que pode ser até classificado como carinho - e receio, provavelmente, pelo que virá).
Goble, que amava as temáticas indianas, não hesitou em transformar Leda em uma princesa desi que, pelo visto, parece mais querer espantar o cisne do que qualquer outra coisa. É raro ver um desenho ou quadro dessa história que mostre Leda fugindo do que, conta a lenda, é seu destino por ter atraído o olhar de um deus. (para não falarmos de uma Leda que não seja caucasiana, também!)
Você poderia criar três histórias diferentes a partir de cada um dos quadros. E mais três histórias invertendo o que você viu (por exemplo: e se foi Leda quem atraiu Zeus? E se Zeus não compareceu ao guichê, digamos, e Leda decidiu por a culpa no sujeito ainda assim?). E mais três histórias invertendo o que você acabou de inverter. E assim por diante. Não é só a história, é como você conta, lembra?
A ideia desta newsletter veio de uma conversa com uma amiga dileta. Ela está escrevendo uma história sobre uma viajante no tempo e estava preocupada com o fato de que alguns elementos que ela tinha imaginado para a trama serem parecidos com o de histórias já publicadas.
Os arquétipos, diriam as pessoas que entendem mais do assunto do que esta diletante aqui, estão presentes em todas as culturas e em tudo o que dizemos e fazemos. Fugir disso é como Leda tentando fugir do Cisne-Deus: praticamente impossível.
Isso não significa que você deva desistir de escrever. Pelo contrário. É aí que você tem que chamar sua criatividade ao guichê.
Claro que temos o medo do plágio. Claro que imitamos os artistas que admiramos no começo da nossa jornada como escritores - é o único jeito de aprender, na minha opinião. Mas, uma vez que você encontrou aquilo que gosta de escrever e o seu tom de voz para escrevê-lo...Aí é com você. Os elementos em comum existem e vão existir sempre, mas só você tem o seu ponto de vista.
Obviamente, algumas combinações fazem com que você pense "eu já li isso antes", mas até nisso dá para mexer. Exemplo: romance com viagem no tempo em que a garota aterrisa na Escócia. Olha, eu adoro o "Outlander", mas veja por outro ângulo. Por que não fazer a mocinha aterrisar em Fernando de Noronha? Não tem kilt, mas tem umas paisagens excelentes (e dá pra encaixar holandeses na costa, dependendo da época em que se passa a história! Olha aí que conceito interessante!). Por que é sempre a mocinha que viaja no tempo? Por que não pode ser o cara? Por que não pode ser um cara se apaixonando por um outro cara de três séculos antes?
Ou então fantasia de guerra medieval com dragões, mas visualmente inspirada em uma ideia de Inglaterra medieval que faz os medievalistas terem crises de urticária. Que tal se inspirar na Espanha na Reconquista? No Marrocos? No Nordeste durante os dias de Maurício de Nassau? Sabia que o Havaí foi um reino antes de ser estado norte-americano?
Pode não existir história inédita, mas isso não significa que a gente não possa se divertir botando tudo do avesso e encontrando nosso jeito de contar.
Agora, se você realmente quer insistir com os kilts ou os dragões porque essa é a minha história e eu quero contar desse jeito e dane-se sua opinião, sua chata-de-galochas... Se prepare para as eventuais comparações negativas (porque afinal nós já lemos essa história antes!) e seja MUITO, MUITO BOM para recontar. Ou você vai acabar condenado a repetir o que já foi dito tantas vezes por tantos outros - e que desperdício seria perder uma voz como a sua!
Ouça os que vieram antes de você. Mas olhe para frente na hora de escrever.
Com um abraço,
Anna
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Dame Blanche
Verba volant, scripta manent