Ed. 59 — O que há em um nome?
E aí, beleza?
Eu já contei para vocês a história do Deodoro, o vizinho da minha mãe?
Tudo começa na rua em que minha mãe morava, na Zona Leste de São Paulo, no começo dos anos 1960. Tinha esse garoto, filho dos vizinhos, chamado Deodoro. O nome chamava a atenção por dois motivos: primeiro porque, mesmo naqueles dias, esse prenome já era considerado antiquado; segundo, porque a família do Deodoro era judia... E Deodoro não é exatamente um nome judaico.
Anos depois, minha mãe descobriu que o amiguinho se chamava assim porque quando seus pais chegaram no Brasil, fugidos da Segunda Guerra Mundial, a mãe do Deodoro quis homenagear a terra que tinha lhe recebido. Ela viu uma nota de cruzeiro com o rosto do Marechal Deodoro da Fonseca e concluiu que, se o sujeito estava estampado no dinheiro, ele devia ter sido importante para o país — e foi assim que o primeiro filho dela ganhou esse nome.
Você sabe por que você tem o nome que tem? Foram seus pais que escolheram? Foi você mesmo, em algum momento da vida? Era uma homenagem a um parente distante ou uma canção ou uma obra de arte?
Tradicionais ou “exóticos”, impronunciáveis ou simples, eles contam sua história. Por isso, dar nome a personagens é uma missão complexa. Não é só procurar algo sonoro na internet: precisa caber dentro do universo que você criou e dentro do cenário onde se passa a trama.
Esta edição da newsletter surgiu depois de ler uma discussão no Twitter sobre histórias (principalmente de Wattpad) em que as personagens tinham nomes norte-americanos — Madelyn, Chade, Kimberly —, mas a trama se passava no Brasil, com problemas brasileiros como estudar para o vestibular ou ir ao shopping de ônibus.
Talvez seja síndrome de Capitão Barbosa ou falta de repertório, mas eis o que aprendi e posso passar para a frente. Se a história se passa no Rio de Janeiro e você me plantou uma Kimberly no meio da trama, eu vou querer saber o motivo. Ela é filha de gringos? A mãe dela leu num livro e achou legal? Ela diz que se chama Kimberly online, mas na certidão está escrito Maria Aparecida e ela não gosta de ser lembrada do fato?
Porque veja bem o nó: por mais que você goste do nome, por mais que ele te soe mais “nobre” do que, sei lá, Maria ou Helena ou Valentina, uma “Kimberly” no Rio de Janero não é condizente com o local em que se passa a história, em nenhum momento da formação da cidade, a não ser que você tenha um motivo interessante para ele estar ali.
E como você encontra um nome?
Bem, pense que ele não existe no vácuo. Por exemplo, existe uma geração de trintonas e quarentonas chamadas Suellen por causa de uma série de televisão chamada “Dallas”, que fazia um tremendo sucesso nos anos 1980, e que tinha uma personagem que se chamava Sue Ellen. A atriz Carrie-Anne Moss tem esse nome porque a música no topo das paradas de sucesso na época do nascimento dela era Carrie Anne, dos Hollies.
Volte ao dia do nascimento do seu personagem: como era o mundo naquele tempo?
Pense no desejo dos pais de seu personagem, mesmo que eles não apareçam na trama. Quando escrevi Um Berço de Heras, eu batizei o personagem principal como Éamonn em homenagem a Éamon de Valera, uma das principais figuras políticas da república da Irlanda. Como o pai do personagem era um republicano e a trama se passava em 1927, fazia muito sentido que este homem batizasse o filho com o nome de um herói da independência irlandesa, mesmo que eles morassem na parte da ilha que era (e ainda é) dominada pelo Reino Unido.
(E, parênteses: se você vai usar um nome estrangeiro, verifique o significado e o gênero dele — em mais de uma fonte, de preferência. Sasha, afinal, é diminutivo de Alexander em russo; em italiano, Andrea é nome de homem; em galês, Ellis é equivalente do nosso "Elias", não de Elis como em Elis Regina.)
Pense que você pode inverter as expectativas com um nome. Paola Siviero disse que batizou os personagem d’O Auto da Maga Josefa porque alguém tinha dito que não fazia sentido um cavaleiro chamado Toninho e uma maga chamada Josefa em uma trama medieval. De fato, numa trama que se passasse na Europa, não faz sentido — mas se a maga e o cavaleiro em questão fossem para o Nordeste do Brasil, não só faz sentido como ainda gera a trama por si só.
Pense no cenário. Mesmo uma Inglaterra medieval imaginada com dragões tem regras — e, bem, no cenário que originou essa imaginação, era mais fácil você encontrar uma Etheldreda ou um Firmin por lá do que um John ou Mary.
Pense que só porque seu personagem se chama X, as pessoas (ou ele mesmo!) podem não atender por essa alcunha. O exemplo da vida real vem do meu avô materno. Todo mundo o conheceu como Nelson. Quando ele faleceu, em 1989, muitos ficaram chocados ao ver no anúncio fúnebre e no túmulo o nome ORESTES...
Então. Meu bisavô registrou meu avô como Orestes, mas minha bisavó, que detestava o nome mas não podia contrariar o marido, chamava o menino de Nelson. E como as mães sempre ganham, meu avô passou por este mundo sendo chamado de Nelson por quem ele amava e foi amado... E de Orestes para as autoridades!
Pense que nomes mudam com o tempo e que tem várias grafias dependendo do local e da cultura. Eu sou Anna — com dois “n”, como se escreve em italiano e em inglês — mas o meu nome pode ser grafado de várias outras maneiras. Se eu calhasse de ter sido filha de catalão, ao invés de ser Anna, poderia ter sido batizada com Anaïs, que tem o mesmo significado em outro idioma (sim, como o perfume! Isso daria uma história).
Se vai inventar um prenome, esteja à vontade, a graça de escrever é essa mesma — mas pense também em apelidos, diminutivos, rimas irritantes para os inimigos usarem quando acharem necessário. Um guerreiro imenso e musculoso cujo apelido se traduz como “queridinho” pode desmontar muito estereótipos (especialmente se o brutamontes acima citado fizer questão de ser chamado pelo apelido de "queridinho").
Nomes escondem muitas coisas, e a graça pode ser colocar esses segredos em outros contextos para ver no que dá. Pense no primeiro dia de aula da Tainá e do Anatole na escola — e a dupla descobrindo que seus nomes significam “estrela da manhã”, só que ela em tupi e ele em francês com origem em um termo grego. Isso não dava uma história?
Com um abraço,
Anna
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Dame Blanche
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