Ed. 05 - Aquilo que encontramos na tradução (ou, café, Homem Aranha e outras coisas complicadas)
Ao som de "Hanno Ucciso L’Uomo Ragno", do 883
Descobri essa música porque sigo uma desenhista italiana no Instagram. Ela postou uma lista de “como tentar explicar os absurdos da música italiana para quem não é daqui”, e a primeira da lista era “aquela música sobre como a indústria do café pode ter matado o Homem Aranha.”
É, eu fiz essa mesma cara. Como é que é?
Por sorte, uma boa alma explicou qual era a música: “Hanno Ucciso L’’Uomo Ragno” — ou, em bom português, “Assassinaram o Homem Aranha”.
“Hanno Ucciso…” foi lançada no disco de mesmo nome em 1992, na estreia do grupo de dance pop 883 (na verdade, o cantor Max Pezzatti com o auxílio de amigos e uma bateria eletrônica bem afiada). É uma dessas músicas que marcaram época em um país – nos comentários do post original, dava para saber quem era italiano por causa das risadas acompanhadas de frases como “nossa, essa é do meu tempo de escola”.
O que tinha a indústria de café a ver com isso? Não descobri ainda – vai ver precisavam de uma rima para fechar o refrão e essa foi a melhor ideia que apareceu na hora1. E não é tão importante saber quem matou o herói (Pezzatti argumenta que poderia ter sido a máfia ou a publicidade, quem pode dizer?) Apesar das aparências, não é uma canção-piada quando você analisa a letra: a morte brutal do Amigo Da Vizinhança é uma maneira velada de falar sobre a falta de perspectiva da juventude no país.
(...) Giù nelle strade si vedono gangs di ragionieri in doppio petto pieni di stress Se non mi vendo mi venderai tuper cento lire o poco più Le facce di Vogue sono divi per noi attori troppo belli sono gli unici eroi Invece lui, si lui era una star ma tanto non ritornerà
Nas ruas dá para ver as gangues De contadores em seus ternos bem cortados e completamente estressados Se não te vendo, você me venderá Por cem liras ou pouco mais que isso As capas da “Vogue” são mitos para nós Atores bonitos demais são os únicos heróis [O Homem-Aranha] sim, esse era uma estrela Mas infelizmente ele não voltará mais…
A capa do disco é igualmente maravilhosa, diga-se de passagem.
A categoria “música com letra pesada escondida por ritmos animados” é uma das minhas preferidas. Exemplos em inglês incluem “Alone Again Or” (Love) e “Hey Ya!” (Outkast). Acho um truque muito interessante, e bem complicado de fazer. Afinal, quando a melodia é animada, a tendência é dançar primeiro e fazer perguntas depois. Especialmente quando você não entende o idioma — e italiano não é exatamente um idioma corrente na música pop internacional.
E aí, desvio para outro assunto pelo qual tenho curiosidade. A Itália divide com o Brasil (e, em certo nível, também com a França) uma característica interessantíssima: uma cultura de música pop muito fértil, mas um tanto insular.
Explico-me: uma banda argentina que faça sucesso em sua pátria pode, com sorte, contar com uma turnê no Uruguai e no Chile em seu futuro próximo. O idioma não é barreira, a princípio. No entanto, uma banda que canta em italiano vai precisar, em algum momento, ou cantar em inglês para sair da Bota (sim, você está pensando em Maneskin, e eu também — veja por exemplo que o disco novo deles é bilíngue…) ou então contar com a sorte de alguém fora do país achar a melodia legal e transformar a canção em um sucesso.
(Exemplos mais ou menos recentes: “La Mia Storia Tra Le Dita”, de Gianluca Grignani, grande sucesso nas rádios brasileiras nos anos 1990, que depois ganhou versão brasileira na voz de Ana Carolina, “Quem de Nós Dois”. Ou ainda “Bem Que Se Quis”, o clássico de Marisa Monte, versão para “E po’ que fà”, de Pino Daniele.)
Uma vez, me disseram que o ritmo 4x4 da música pop favorece o idioma inglês, por isso a gente estranha quando escuta a batida cantada em português: seria como forçar um paralelepípedo de rua para caber em um buraco do tamanho do seu dedo polegar.
Se é verdade, não sei — mas sei que nosso idioma transborda para todos os lados quando falamos e quando cantamos, então a teoria até faz sentido. Minha grande dificuldade escrevendo contos em inglês é precisar me resumir — porque o formato e a linguagem não permitem arroubos semânticos; o drama é sempre mais contido, subentendido. É grosseiro gritar, é rude falar na cara o que se pensa… E às vezes, você precisa gritar para ser ouvido. E aí?
Não à toa, somos os exagerados do globo terrestre: tudo abaixo da linha do Equador é excessivo. Você tem duas opções: se lamentar e esconder, ou assumir e devolver a questão da tradução para o receptor. Entre se cortar em pedacinhos para ser mais palatável ou se manter inteiro e ver o Outro se engasgar, existe um universo de decisões.
Porque no fundo, tudo é tradução — e quanto mais ouvimos o nosso oposto, mais aprendemos sobre o que somos e não somos. De vez em quando, é bom lembrar disso… Nem que seja para tentar descobrir o que a indústria de café tem a ver com o Homem Aranha!
A jukebox da casa também recomenda: “Ringo Starr”, da banda italiana Pinguini Tattici Nucleari — outro exemplo de letra levemente amarga em melodia extremamente dançante, e usando o Beatle “classe econômica” como metáfora para uma vida de coadjuvante.
Se tem alguém na plateia que fala italiano e pode auxiliar nessa questão, por favor se manifeste na caixa de comentários… E se tem alguém que entende de quadrinhos e sabe dizer se isso é referência a algum “lore” do Homem Aranha, ajude!