Ed. 07 - Somos todos sobrinhos da Rita Lee
Ao som de "Vírus do Amor", de Rita Lee e Roberto de Carvalho
A pauta era outra, bem verdade — fiz uma lista de músicas quando comecei este boletim e pretendia segui-la à risca para manter um mínimo de periodicidade e de sanidade. Porém, jornalista de formação que sou, sei bem que a vida é ao vivo e tem horas que a pauta cai por motivos urgentes.
Saber que Rita Lee está livre do câncer mesmo é notícia urgente o suficiente para mim. Então, som na caixa, ora bolas — porque tenho para mim quem gosta de música brasileira moderna é sobrinho em algum grau de Tia Rita de Sampa, e sempre é bom falar de quem gostamos enquanto eles ainda estão aqui.
A questão, como sempre, é escolher uma canção para nortear o texto. Que seja: minha Rita é uma criatura meio new wave, meio comédia de costumes, com umas canções meio estranhas e teclados eletrônicos — uma ruiva quarentona e completamente fora do esquadro num mundo de loiras televisivas sempre arrumadinhas. Aqui estamos nós, começa “Vírus do Amor”: serve bem como abertura e como anúncio das nossas intenções.
Rita e Roberto (1985) não é o melhor disco da dupla, se formos analisar pelo viés “hits de sucesso radiofônico”. A música mais famosa do álbum, “Vítima”, só ficou mesmo conhecida do grande público porque virou abertura de novela uma década depois (A Próxima Vítima, de Sílvio de Abreu e colaboradores, pela TV Globo.)
Porém, quantos discos você conhece que ganham um especial cômico-psicodélico na maior emissora do país e em plena época de Natal e férias de verão, horário mais que nobre para a época? Eu mesmo não consigo imaginar ninguém aprontando uma dessas, mesmo hoje (embora, claro, adoraria ver um filme-conceito de discos como AmarElo ou De Primeira, cada um com seu estilo narrativo particular — alguém aí tem o contato do pessoal da Marina Sena?)
No trecho escolhido como exemplo, temos: corpo de baile de sapateado estilo anos 1930, um grupo de idosas assustadoras, um look Shirley Temple (figurinos do imortal Patricio Bisso1) … e uma canção hilária sobre um tema nem um pouco engraçado. E sim, aquela senhora logo no começo do vídeo é a Dercy Gonçalves. Eu disse que o troço era cômico-psicodélico, caramba.
Foi a Rita Lee aos quase quarenta anos, interpretando mil pessoas diferentes na frente da tela, que eu conheci primeiro. Galhofa sempre fez parte do pacote da artista, verdade — mas para uma criança pequena que não tinha a menor ideia de como o mundo (e a cabeça de Rita Lee) operava, imagine só a explosão ao ver essa grande bagunça televisionada!
Nascia ali um caso de identificação à distância: não dava para ser Rita Lee, mas dava para se imaginar algo parecido com ela se a situação exigisse. Todo mundo tem direito de ter um avatar para casos de emergência, eis o meu.
Rita existe em vários planos — talvez seja isso o que me atrai tanto nela. Ela estava lá vestida de noiva na tevê em preto e branco, está agora em seu sítio respirando mais leve, como esteve antes vestida de dona de casa dos anos 1950 em um especial na tevê colorida. A arte trespassou o tempo e se espalhou em quem ouviu e ouve. Isso é uma maneira de viver para sempre, não é?
Os dias são longos e os anos são curtos, dizia um amigo meu sobre os filhos. Penso um pouco assim em relação aos artistas que gosto. Quando ouço sobre o falecimento de um artista que viveu por muito tempo, sempre penso na honra e na sorte de tê-los tido por perto — no rádio, na TV, no streaming, no disco que você acha que só você e mais meia dúzia conhece, na canção que vira tatuagem ou bordado ou nome de filho (ou as três opções, dependendo do escopo da obra…)
Vá atrás de música nova, é o que te digo: descubra quem estará na memória dos seus filhos, sobrinhos, primos ou dos filhos dos seus amigos quando todos eles tiverem quarenta anos. Conte para eles sobre quem você ouvia — não por nostalgia ou para provar que “antigamente é que era bom”, mas porque esse ato ajuda a manter o fio que nos une bem esticado. Nós existimos em vários planos: na memória, no dia de hoje, no que virá depois que nos tornarmos poeira estelar outra vez — por que não ser lembrado com amor, com humor, com carinho... e por um tanto de galhofa?
…Ou por um número de sapateado, por que não?
Ouça a playlist do “Escute Esta Canção” por aqui
Por falar em personagem maior do que a vida! Patricio Bisso foi tudo: figurinista, ator, ilustrador, cenógrafo, vedete, tudo mesmo. Merecia mais reconhecimento. Pretendo falar mais dele em outra edição da newsletter, mas se querem saber mais do trabalho dele por enquanto, procurem o filme clássico O Beijo da Mulher Aranha — os figurinos são dele, e ele também está no elenco.